segunda-feira, 31 de julho de 2017

Viajando - Sete Portos




OFERTANÇA

Meu coração quer ofertar, com floradas do sertão, de vivazes cores, o meu amor por você, minha companheira Vilminha que fez esta viagem comigo;

Meu coração que ofertar o que recolhi nesta viagem, um tanto dos perfumes e amores, aos meus queridos filhos, ânimo e aprumo de minha remada;

Meu coração quer ofertar, para que tenham gosto pelo que puro tem o mundo, o recolhido neste livreto, aos meus amados netos, luzes que me inspiram tanto;

Meu coração quer ofertar o que recolhi, com a mesma alegria, ao eu genro e às minhas noras, pois comigo sempre estiveram alimentando sonhos.

Na popa ou na proa, a bordo ou estibordo do meu barco, os Acacianos que navegaram rumo ao ninho das estrelas, sob a abobada celeste onde reina a síntese do Amor.

Cidade das Pedras, janeiro de 2003.


APRESENTAÇÃO

As ilustrações deste caderno barranqueiro vêm da sensibilidade do jovem José Augusto Barbosa Júnior – JF -, 21 anos, que me surgiu como por encanto, apresentado pelo meu sobrinho Jivago.
Passei os poemas deste caderno para ele examinar e desenhar alguma coisa como ilustração. Ele sumiu uns tempos. Imaginei: quis demais. Esqueci.
Um dia eis que ele bate à minha porta e, com seu jeito tímido, voz macia, quase inaudível, sorriso leve, mas de olhos brilhantes, passou-me sete desenhos – os meus Sete Portos. Seria o nome do caderno, o primeiro escolhido, por simbolismo puro. Depois se transformou em Viajando pelo São Francisco – meu irmão Domingos Diniz achou o título muito espichado. E ficou sendo Viajando e foi para ele que o JF trouxe a arte, de uma forma tão expressiva que passa exatamente o sentimento primeiro: o desejo seria o de viajar, mas sem sair do porto. JF então, com rara sensibilidade, pôs na sua arte todo o sentimento barranqueiro. Cada quadro, tão expressivo, tem uma parte da alma barranqueira, ali no ar, pairando sobre as nossas coisas.
Agora, digo: a arte do JF se fez poema, dos mais belos e expressivos poemas.
Fico “emprazeirado” e feliz dele ter aportado comigo, com todas as âncoras e com a alma solta no nosso céu profundo, nos cerrados de lonjuras sem fim, esbarrando nos buritis...
Obrigado, JF, filho de José Augusto e Maria José.



PRIMEIRO PORTO

A passagem/travessia - por onde flui
a vida no sertão, onde é deixada a alma
para se ter o gozo da vida, outra.
Talvez a ida...





SOLIDÃO

Estou só no meio do mundo... 
Ou serei o mundo?
Quero ter um porto
Ou apenas uma passagem?

No porto que deitar meu sonho,
Ficarei tempos tantos,
Para sentir na veia, a terra;
Do mundo passado, as alegrias.

Estou só no meio do mundo,
E sem resposta às indagações;
seguir viagem é um chamado,
Mais só do que quando cheguei.


FILETE 

Uma lágrima passageira dos campos altos 
Vem à terra seca, notícias do ar trazer,
E a umidade que fica é a lembrança boa
o que passou semeando esperanças.

Um filete, despretensiosa gota, de pouco de se ver,
Que recolhe no ir e descer, pelas dalas aos vãos,
Os destinos comuns de águas brotadas;
A sina, no mundo criada, de ir e depois voltar.

É preciso ir, mesmo que seja um filete, pois
Não se faz o maior e mais belo manancial,
Nem mesmo o mar bravio ou depois sereno
Se não existir, antes, a despretensiosa gota.


RIO 

Rota das rotas de quem busca seu destino,
E tromba nos sonhos sem entender o que teve;
Águas chegadas e águas roladas, sem fim,
Colhendo história para escrever epopéias.

Do sol que nasce, brilhando e rebrilhando,
Um espelho de vida que mostra todo o céu;
Se é noite, de lua ou escura, sem diferença:
Dorme embalando tantos segredos e lendas.

É sangue, é corpo, é alma que escorre;
É um povo que se dilui em saudades, 
Porque, mesmo indo nas águas majestosas,
Deixa parte plantada nas barrancas seculares.


PESCADOR 

Partícula dos assombros milenares que mergulha 
Nos tempos das luzes que não mostram caminhos;
Que sai todo dia no ir, seguro de ter que voltar,
Porque uma âncora prende seu corpo ao ninho.

A extensão do peito é corda fria que estica,
Levando parte da barriga de quem espera;
Os braços retesados têm o símbolo da alegria
Do coração que disparado bate o sino do porto.

Vai e vem, noites e dias, como as águas do rio;
Leva sonhos e recolhe desesperanças, quase sempre;
E de jornadas feitas escreve a longa história
De um povo que sabe o peixe para poder viver.


HOMEM

Na peleja entre a matéria e o espírito, fica no seu porto; 
É o modo de cada um ter de fazer seu mistério/mister;
E as noites cobrem as noites, perdendo-se nos tempos,
Enquanto recolhe fatos/vida/dor/alegria, faz história.

Ali, de raiz plantada nas pedras para não ter de sair,
Cumpre sina de passageiro do rio na eterna missão;
Ali, plantado para não ganhar os gerais mais além,
E perder a água do seu batismo de barranqueiro.

O destino tem de ser o de ficar, onde foi nascido;
Ficar ali, plantado, mesmo de querer ir descendo,
Pois que, como um angico, parece buscar o céu;
Os pés ficam/fincam no rio, o porto de sua vida.




SEGUNDO PORTO

De ficar num porto, fincar raízes querendo,
e a alma, na placitude espelhada, deitar.
Ver a luz e não sair da escuridão,
na dormência do não chegar de chegar mesmo.





LENDAS

No passado, do tempo sumido,
O homem plantou parte de sua vida;
Viajou noites e trouxe seus temores
Perpetuando o seu modo de ser/viver.

Idas e vindas, tantas voltas,
Percorreu diversos caminhos;
Mais esconsos que claras trilhas,
Mais escuridão que brilho da luz.

O fantástico tomou conta de sua alma; 
O mundo dois se fez tanto/tanto real
Quanto o que ele mostra ser homem,
Por isso ele continua viajando no tempo.


MITOS

Então o homem pousou o pé na lua!
Então o homem troca coração do homem!
O mundo corrido vai longe demais...
Mas o homem viaja carregando seus temores.

Inda ontem o pescador desafiava o caboclo d´água 
Para ter a graça do peixe ou desdita do nada;
Inda ontem riqueza se fazia com o Famaliá,
Ou se danava com as diabruras do Romãozinho.

E era ontem? Qual o quê! Sem espanto:
Na quietude do Chico a história se revive.
O ontem se mistura com o amanhã,
O hoje é tempo de ida e vinda. É só assuntar.


TIPOS

Pois é o que se vê: cada alma tem seu universo;
Pois é o que se sabe: cada cabeça tem sua história;
Pois é o que se conta: cada coração tem seu amor. 
Pois é, o homem não navega na alma do homem.

Cada um leva seu sonho no seu mundo diverso;
Cada um tem seu rumo para buscar um porto,
E, no seu viajar, aos outros pode parecer diferente,
Mas, para ele, os outros é que não viajam.

Um busca um amor; outro apenas espera;
Um conta uma história; o outro a recolhe;
Um quer uma canção; outro apenas cantar;
São tolos? São apenas parte de nossa história.


PELEJAS

Tremem as barrancas, sobem as maretas;
O cerrado vira trilha, grita a seriema;
Um barulho acorda e dorme a cidade,
E aos tantos pipocos sucede muita dor.

Tempo houve que o rio e o porto
Não recebiam os afagos dos regressos;
Fizeram-se passagem - caminho só de ida,
E suas canoas a ponte da salvação.

As pelejas foram tantas, o barulho...
Painel de uma época que sangrou o sertão,
Mas de tudo, depois, restou um povo forte,
Caldeado na sua própria história.


CAUSOS

A vida não é só o hoje
Nem será só o amanhã;
Gostinho bom de se ter
É o que se guardou.

O hoje está se fazendo,
O amanhã a aprontação do ter;
O ontem é diferente, é certeza
Do bom ou ruim que se teve.

Aqui no porto a vida era passada,
Numa esquina ou calçada lisa,
E os causos, como cheias do rio,
Levavam da alma todos dissabores.


CURADORES

Raiz, casca, cipó, fruta – uma garrafa;
Dores e males não ganham o sertão, pois
Catarino, Olímpio, outros iguais ou menores,
Aportaram aqui para dar refrigério ao homem. 

A ciência do ver e aprender, a natureza ensinou:
Mucunã no bolso – alívio para o assento;
Pedra da cabeça de corvina - frescor do verter.
Na terra, no céu, na água, é o refazer da vida.

Deus, bom Pai, ajuda o homem ajudar o homem:
A cura do corpo, a cura da alma, é a segurança,
Na sua solidão e desamparo, onde é o seu porto,
Pois que pobre seja, o homem aqui nunca está só.




TERCEIRO PORTO

Ascendem, no sopro da brisa da secular crença,
os pedidos de todo dia, em prece;
maiores que a dor são a esperança e a fé
que não se extinguem, jamais.





SANTO ANTÔNIO 

Chap, chap, chap, chap....
precatinhas levantando areia
que ganha o alto de Deus.
Chap-chap: trilho espichado no sertão.

É Santo Antônio, Antoninho,
Voltando das Pedras para a Serra,
Querendo seu ninho. O vaqueiro viu
e garantiu, e o povo disse amém.

Foi por aí, pelo mesmo caminhar,
Dado começo da leva de gente de fé,
a romaria do sertão de mais de cem anos:
Serra das Araras de Santo Antônio.


SÃO JOÃO

O santo do carneirinho é de formusura só.
É o de ficar mais junto de Jesus, 
De todos os santos, é o que se sabe.
Neste porto, ele é o mais cantado.

O imperador Lúcio no horror do medo,
Assustado pelo coisa ruim, numa feita,
Só de ter principiado a toada do Rio Abaixo,
Dele fez no céu o seu maior advogado.

Na terra fez um que de folias tantas;
No mastro, alisado pelo tempo corrido,
Pendurou a bandeira, e nela o seu petitório
Com São João embalando o carneirinho.


BOM JESUS

O rio vira caminho do fervor de tanta gente;
Coleando, que nem cobra grande, desliza,
Não esbarra em porto algum, descendo vai
Abrindo caminho pelo sertão, o rio de fé.

Nas mansas e claras águas de agosto,
Fica que nem mancha de tanta embarcação,
Todas parecendo uma só, em oração,
E com o destino mais certo que o certo.

Canoinhas, jangadas de paninhos pouco,
Garrafas e até enfeitadas caixas-de-fósforos,
Levando papel com letra desenhada:
Pedidos de fé ao Bom Jesus da Lapa.


SÃO GONÇALO

Badé deixou os cachorros na rua/na lua,
Escorou a carroça e soltou o burro pintado;
Vestiu-se de branco tal qual algodão
E ganhou um ofício de nobreza tanta.

Assim, bonito, aponta no terreiro molhado,
Na frente de duas alas de mulheres,
Alvas nas suas vestes, levando arcos enfeitados.
Fervor: Ora viva e reviva, São Gonçalo, viva!

Levanta o som das caixas, geme a viola,
Passa no terreiro a história de tantos anos;
As mulheres dançando e dançado ao cansaço,
E no altar São Gonçalo vigiando... e sorrindo.


REIS

Aconteceu: o Oriente veio numa estrela ao sertão,
E ela tomou de luz os corações de foliões;
Eles, logo, empreenderam uma grande caminhada
Atendendo ao mesmo propósito dos Reis Magos.

Numa lapinha, a manjedoura, uma prece cantada;
Mimos de respeitos ao Menino-Deus, o que veio;
Contritos, de caras rugosas, a voz nasce rouca;
Uma e outra varando paredes o hino de louvor.

O quatro e o lundu são preces de alegria do corpo,
Versos divertidos, danças apreciadas;
Os reis cantam a vida (re)chegada ao mundo
Com todo o gosto da alma do povo.




QUARTO PORTO 

As asas é preciso soltar;
voar nos sonhos e levar a alma
aonde habita a fantasia
num mundo caleidoscópio.




CARNEIRO

O que via pecado na umbigada, proibiu;
E o terreiro ficou, de todo, sem graça,
E, enquanto o batuque inundava o ar,
Os corpos ficavam como seres dormentes.

A idéia, então, chegou no entendimento dos bichos,
Porque eles e as plantas fazem a vida;
E o homem viu num momento de grande prazer
Que poderia ser do jeito do carneiro: marrada!

O umbigo ficou virado, deu-se as costas,
Bateu-se firme o pé: olê, lê, carneiro dê!
E as noites ficaram pequenas desde então:
Tum... tum... tum... chamam as caixas: marrada!


QUATRO

A linha invisível é o ponto de apoio...
Repercute o som das caixas e das cordas,
Dançadores ganham asas, e soltam o corpo,
Avançando e ciando como as maretas do rio.

Versos ganham música, contam causos,
E desfiam histórias de homens e bichos;
O corpo roda rasgando espaços no salão;
Vai e volta, o oito desenhando entre par.

Paralelas, diagonais, cruzes feitas na função;
Braços tesos ou soltos, indicam caminhos,
E o dançador passa daqui, sai por ali,
Na febre que assoma de cheio o barranqueiro.


LUNDU

Parece um rasgo de luz, o corpo do belo cervo
No inesperado salto elegante que corta o ar;
E é de tanta beleza e força o avançar do corpo,
Rasgando o espaço, levado pelas asas, o jaburu.

Dos bichos sem as intenções, mas só de jeito,
O homem pisa no salão, em roda formada,
E de igual trejeito rodopia e chega, a mulher;
Sobe a volúpia, vaza intensa sensualidade.
Sobem os sons das caixas, violas, rabecas e violões;
As palmas incentivam a cadência do sapateado;
Envolvem-se todos em histórias ali vindas e passadas;
E atravessam-se noites no inebriante lundu.


REIS DO CACETE

Marinheiro tá, tá, marinheiro tá me chamando!
Chegou uma enfeitada e ruidosa barca no porto:
Veio de longe, do Oriente, em viagem de anos,
Para aportar aonde antes chegou o Menino-Deus.

Espantam os perigos da jornada, os inimigos,
Brandindo cacetes no ar, no chão, como espada,
E cantam em coro forte de marujos viajados,
Intrépidos reis das águas contando sua história.

Rodam e invadem terreiros, despertam a noite,
Trazem do mar o cheiro às barrancas do rio, em festa;
Dão todos os tons e cores ao mundo, no passar:
Que todos saibam e festejem Aquele que veio!


BOI-DE-REIS

O menino ri largo como o rio solto,
Adjutoram outros na mesma alegria;
Rompem na ponta da rua bradando:
“Todo mundo me dizia que esse boi não saía!”.
O porto recebe as doces saudades
da chegança da gente/costume, suas raízes;
a vida que aqui foi um dia plantada
com as cores vivas do boi/alegria.

E a cidade explode em sons e vozes,
Que a alma está na sua viagem;
E a meninada repete com alarido maior:
“Meu boi está na rua com prazer e alegria!”




QUINTO PORTO

A mão é alma moldando sonhos,
dando vida à arte
de um mundo de anos construídos.




BARRO

A forma vem pelos dedos,
fluindo sentimentos guardados;
um pote é mais que um objeto,
é uma vida renascida.

As mãos se aprofundam nas locas
e na umidade sentem a veia da terra,
e dela o pulsar do sentido
que leva o homem às suas origens.

E tudo que nasce da massa preparada
é a mistura dos tempos juntados;
a fusão do ontem ao hoje
para que se tenha o amanhã.


BURITI

As linhas das cerdas traçadas
São como os tantos caminhos
Que o veredeiro percorreu
Escrevendo a sua história.

E ali, com o pé no manso regato,
Ele finca mais ainda a sua vida,
E extrai do buriti sua essência
Para seguir sua sina até se encantar.

A rede, o chapéu, o laço e a cama;
O fruto que alimenta por tempo; 
Sustança do corpo e da alma,
E, no fim, do colmo, tem a sua cruz.


MADEIRA

A carranca é parte do mitológico
Que viaja o rio em busca de um porto;
É a segurança do marinheiro e viajor
Nas longas e perigosas travessias.

A canoa leve, forrada de curimas e pintados;
O barco fornido, quase fazendo água,
Abarrotado de abóbora, melancia, milho e feijão
Ou a areia grossa para levantar cidade.

A viola, rabeca, violão ou caixa do folião;
Neste porto a vida passa pela madeira:
Imburana, cedro, pau d´arco, jatobá, e...
O formão e o malho escrevem histórias.


FIBRAS E VARAS

O retorcer dos dedos é gesto delicado,
Num instante em que se molda a vida.
Conceber antes, com a suavidade do amor,
Para trazer ao mundo pedaços do homem.

Uma rede, um chapéu, o bocapi ou o laço;
A carocha, a cama, o balaio ou a esteira;
A saia bonita, calça grosseira ou coberta:
Das fibras se compõe o homem no seu viver.
A cerda, enquanto buriti, é aprumo de folhas;
A taboca, enquanto vara, é cantiga ao vento;
O croá enquanto moita, é talo de espinhos.
O todo na arte feita a vida/história do homem. 


COURO

No trotar tortuosos caminhos pelo sertão,
Tangendo tropas de mulas e burros, 
Era vezo, muito mais por necessário,
O homem fazer de sua utilidade, o couro do boi.

Os arreios e arreatas dos resistentes animais,
A bruaca de couro cru para suportar espinhos;
Delicados enfeites na cabeça da rainha da tropa:
Tudo do couro arranjado com maestria secular.

O bocapi seguro de levar grampos e rapadura;
O baú, caixa de guardar histórias de fazendas/gente.
O couro do boi foi muito mais do que serventia:
Nessas travessias, foi a segunda pele do homem.



SEXTO PORTO

Dos gerais a brisa floral desce,
Desliza pelos vãos,
beijando riachos e gentes
no gosto de sua paz.




FARINHA

De ser tão rústica para suportar o agreste,
Não haveria a macaxeira de ser nobre,
Mas sem ela, é preciso dizer, de verdade,
O sertão não seria de tanta riqueza.

É mais do que comida para o corpo,
Antes ela é alimento para a alma,
Pois no seu itinerário até ser levada ao prato,
O homem conta e reconta a sua história.

No mutirão, atirando manivas nas covas;
Na oficina, no raspar ou cantando na rodinha;
Na borda do forno contando causos:
O sertão criou o universo das famílias.


RAPADURA

A estrela- d´alva precede ao sol – brilha!
A cana tem gelo do sereno da madrugada;
Muge a junta de bois - grita o candeeiro;
O moedor canta despertando os galos.

Acorda o engenho, imensas moendas gemem,
Esmagam braçadas de cana: desce a garapa;
O menino, com a cuia, goza do néctar do campo;
Os tachos esquentam os fundos. Ferve a calda.
A batida, primeiro, no canto da masseira se faz;
A rapadura, depois, dividida em formas tais...
Repete-se o milagre da interação: homem-terra,
E é propício, assim, de adoçar a sua vida.


CACHAÇA

Do exagero levar ao mal, abnegam-na muitos,
Mas há de se tomar tenência:
De mamando a caducando, é vezo no sertão,
A cachaça mais que bebida, é alimento.

Se das imemoriais noites milenares, bebem,
De gregos a romanos, e outros povos também,
E até está escrito, no dos cristãos, livro sagrado,
Que os etanóis não podem ser fruto do diabo.

Tem nobreza a uva, com o sagrado vinho;
Cevada e arroz fazem gosto do rico, um luxo;
Mas por ser farta, comum e não fazer distinção,
É a cachaça que faz a história do sertão.


MASSA

O pasto: o broto ou o capim fenado,
A fonte do leite, da massa,
E depois de tudo achado, 
Vale é o saber, a ciência do preparo.

Arte mor da mulher na sua sabença de tradição
De preparar o leite para o bom queijo
Ou de se chegar ao ponto certo da fervura
Para dar forma ao brilhoso de óleo requeijão.

Do queijo, a quitanda, a massa, com variedade;
O melhor modo de agradar as visitas chegadas.
E, em cada uma delas, a mão passada, no presente,
As receitas guardadas do ontem - é a história.


IGUARIAS

A gamela com as cores mais vivas carregada,
Arômata inebriante, um maná do sertão;
A mistura do mais trivial que é possível de ter,
Mas que arrebata o homem e aumenta a prole.

O licor suave como néctar de poucos colibris,
Trazendo a fragrância dos campos altos,
O doce de polpas puras de sabores insondáveis,
A fartura da mesa na riqueza do sertão.

Pequi, buriti, umbu, cagaita, jenipapo, 
De cada galho pendido chega preciosa dádiva;
De tudo provém este porto, uma fartura,
E em cada copo ou gamela, uma história contada.




SÉTIMO PORTO

Os caminhos
- como teia de aranha
Levam a um só ponto:
este porto!





CAMINHO DO RIO

Salão iluminado, um triste e prolongado apito,
Trazendo o bojo forrado de sal, pedras de forno e filtro;
As classes marcadas pelo luxo e redes estendidas:
Vapor subindo rio, deixando coisas e civilização.

Passageiros de negócios com ares de coronel,
Com destino certo, seguros pela abastança;
Outros apenas levando sonhos e esperanças,
A ilusão do novo mundo na cidade grande.

Por acaso, descuido ou por instantâneo gostar,
Muitos, nos passares de tantos vapores,
Neste porto aventuram descer os teréns,
E deles grandes famílias se fizeram de raiz.


ESTRADA BAIANEIRA

O caminho mor foi o rio grande
Coleando barrancos, desde o mar,
Até alcançar as altas montanhas de Minas
No caminho da nova civilização.

Por ele ou atado nele, pelas barrancas,
Uma grande trilha espichou-se tal cobra,
Rasgando caatingas, avançando na catanduva,
E pingou gente de formar povoados, depois.

A baianeira foi a longa estrada de vir:
Meninos nas costas, paçoca no bocapi,
Preciosa carga na grande jornada...
Semente lançada neste porto, fincou raiz.


ESTRADA DO TROPEIRO

O sertão feito coberto de verde, só.
Mata alta e fechada; chapada de pau torto;
Campinas de arbustos ralos e de capim vedado,
Tudo forrado como tapete, sem rotas definidas.

Com o tempo o cincerro da mula rainha
Anunciou que o sertão seria feito em veias,
Trilhas seriam abertas em todas direções
No tropel pesado e penoso da tropa de mulas.
Caminhos primeiros indicando direções
Para a vinda da civilização no inóspito mundo.
Pelas patas das mulas, ferindo o verde,
As trilhas deram outra roupa ao sertão.


ESTRADA DO CARRO-DE-BOIS

Eia, Maludo! Eia Malhado! Segura o coice, boi!
Eis, Moreno. Eia, Cigano! Puxa firme a guia, boi!
A cantiga feita no cocão azeitado zuniu,
E a roda cravada rasgou trilha na terra.

O mantimento levado para as Pedras,
E de lá trazendo o que não tinha o sertão:
O sal, a querosene e a novidade do arame.
Carro durante meses cantando no sertão.

Nos pousos os causos, história e a permanência,
Dando de surgir estâncias e, depois, povoados.
Nas rodas do carro-de-bois o sertão foi acordado,
Abriu suas fronteiras e horizontes ao dia vindo.


ESTRADA DE PNEUS

Do remo, pés descalços ou precata de couro;
Patas das mulas ligeiras ou atarracados bois,
Uma longa jornada se passou, o tempo...
E tanta história foi contada e pouco escrita.
O bucólico, o virginal, o frescor da natureza,
Tudo de bravio, forte, rico e abundante,
Solveu-se em lembrança com o novo mundo.
As estradas de pneus avançaram o tempo.

Luzes, muitas luzes e roncos de motores;
O porto perdeu seu encanto e a sua valia;
A história de hoje não passa mais por ele,
Avança no sentido contrário das barrancas.


LEMBRETE:

No meu canto derradeiro,
Já faltando a voz, no peito cansado,
Pergunto, sem querer ouvir a resposta:
E o homem, como ficou?


LENDAS

No passado, do tempo sumido,
O homem plantou parte de sua vida;
Viajou noites e trouxe seus temores
Perpetuando o seu modo de ser/viver.

Idas e vindas, tantas voltas,
Percorreu diversos caminhos,
Mais esconsos que claras trilhas,
Mais escuridão que brilho de luz.

O fantástico tomou conta de sua alma;
O mundo dois se fez tanto/tanto real
Quanto o que ele mostra ser homem,
Por isso ele continua viajando no tempo.


OFERTANÇA

Meu coração quer ofertar, com floradas do sertão, de vivazes cores, o meu amor por você, minha companheira Vilminha que faz esta viagem comigo;

Meu coração quer ofertar o que recolhi nesta viagem, um tanto dos perfumes e amores, aos meus queridos filhos - ânimo e aprumo de minha remada;

Meu coração quer ofertar, para que tenham gosto pelo que puro tem o mundo, o recolhido neste livreto, aos meus amados netos - luzes que me inspiram tanto;

Meu coração quer ofertar o que recolhi, com a mesma alegria, aos meus genros e nora, pois comigo sempre estiveram alimentando meus sonhos.

Na popa ou na proa; a bombordo ou a estibordo do meu barco, IIr Acacianos, à ordem, navegaram, com os olhos no ninho das estrelas, sob a abóbada celeste, onde reina a síntese do Amor, o Grande Timoneiro e Arquiteto do Universo, ajudando-me na travessia.
Cidade das Pedras, ano 502 do Rio São Francisco.

................................................................JOÃO NAVES DE MELO



PASSAGEIRO

Na minha viagem pelo rio São Francisco, indo e vindo no tempo, preciso foi que tomasse um passageiro, um que tivesse alma gêmea no debruçar de gosto e apreciar todo nosso mundo sertão, nosso rio e nossa gente com seus modos.
Por isso foi que mandei uma passagem ao meu irmão barranqueiro Domingos Diniz. Ele aceitou a viagem e, no fim da jornada, ele pintou minha barcaça. Minha viagem ficou de ser de ida, da nascente à foz do nosso rio, e de ser de volta ao meu porto, pois aqui está a minha âncora. Domingos me enraizou mais ainda com seu navegar, pescar e emoldurar meus versos, todos de amor ao meu rio-mundo.

Vaza, Domingos:

“Não é fácil emitir uma opinião, ainda que subjetiva, pessoal sobre poesia. Depois de reler os poemas comecei a ler autores consagrados sobre o conceito de poesia. Li Mário de Andrade, Oto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, o próprio Drummond. Por felicidade minha na Tribuna da Imprensa de 29/1 veio um trabalho muito bom sobre um livro de poesia assinado por Ricardo Vieira Lima, jornalista e poeta (não o conheço). Foi bom que reli coisas que a gente vai esquecendo. Li alguns conceitos de poesia. Não definição, pois poesia não se define (definir é limitar e poesia não se limita).
Eis alguns exemplos:
“... poesia, uma nau ancorada em por submerso”. Porto submerso! Como pode? Só mesmo o poeta para colocar a poesia num porto submerso. Mais adiante leio está pérola: “Porque a poesia, entre todas as artes, é a mais catártica. Sua fala é, sobretudo, para dentro. Como a filosofia, a “poiésis” busca a essência do homem”.
Você, Naves, tem a consciência dessa afirmativa. A essência do homem é a sua busca eterna. Para achar a essência do homem você, com sua poesia, penetra na realidade que circunda o homem. O homem sertanejo.
Por falar em realidade, eis o que Oto Maria Carpeaux fala:
“A realidade social faz parte da realidade geral, do mundo, das sociedades, homens, bichos, coisas objetos de toda espécie, daquele mundo que nos rodeia e limita, dando ao indivíduo a medida de sua solidão e a medida de sua capacidade de criar novas realidades”.
Mais adiante Carpeaux diz: “fazer poesia, isto significa transformar em luz própria a sombra que o mundo exterior deita na alma do poeta”.
É o que você faz. A este mundo, através da força da palavra, você deu luz própria; deu vida. E neste mundo está o mundo. Está o EU forte do poeta que é o EU universal, de todos.
E olhe que o poeta espanhol Pedro Salinas (em citação de Carpeaux) diz: “a poesia dá vida às sombras dos mortos e esperança aos ainda não nascidos”.
Sua poesia, ou melhor, seus poemas de VIAJANDO são objetivos. São a expressão de sua sensibilidade objetiva, precisa das coisas. Como seu irmão em tudo, sinto-me à vontade de meter minha colher enferrujada no seu mingau de milho verde, o néctar dos deuses.
Vamos por etapa.

Primeiro Porto

SOLIDÃO: Ótimo poema. Versos curtos. No primeiro “quarteto”, a indagação, a indecisão. No segundo “quarteto” você acha o lugar, o porto. Está aí: o porto submerso. Um porto do rio. A gente que conhece, sabe que é a sua São Francisco. No terceiro “quarteto”. A solidão do poeta. Solidão que vai criar nova realidade dentro de sua realidade social-sertaneja.

FILETE: O início de tudo. As grandes caminhadas começam com o primeiro passo. As grandes construções começam com um simples tijolo. O rio começa lá na serra da Canastra com o filetizinho. Também um poema épico ou lírico começa com uma letra, com uma palavra, com um período. “a despretensiosa gota” é um belo achado. É chave do poema, do livro, pois estou certo de que você transformará estes originais em um livro.

RIO: Neste poema, você dá vida à sombra não morta do rio, mas à sombra de um acidente geográfico. Sem jogo de palavras, sem metáforas, você, com palavras concretas, vivas, dá personalidade a um ser inanimado. Uma prosopopéia das melhores. Você dá ao rio a dimensão de um ser vivo, de alma e corpo que se move por si mesmo. Uma estrela e não um cometa.

PESCADOR: Quatro versos muito bem construídos - “Porque uma âncora prendeu seu corpo ao ninho”
1) “A extensão do peito é corda fria que estica” (bela imagem metafórica)
2) “Levando parte da barriga de quem espera” (Metonímia muito bem concebida. Barriga no lugar de fome, no lugar de filho e esposa.)
3) “De um povo que sabe o peixe para poder viver”. O coletivo “povo” em lugar de pescador. A consciência da necessidade do peixe para se sobreviver. O rio, a natureza, dá tudo ao homem. Este porém avilta a natureza: agride a natureza. Daí o peixe (para o pobre poder viver) ficar raro, raríssimo. Tantos são os objetos estranhos que o “civilizado” joga nos rios, que a natureza responde. Cadê o peixe? O poema é firme. Duro, consistente. Os outros versos estão à altura dos acima citados. Então há uma unidade estética.

HOMEM:O homem agarrado ao barranco, ao porto seguro. O velho dilema do poeta inglês: ser ou não ser. Ir nas águas do rio ou ficar. Ser âncora amarrada nos angicos ou soltar-se como uma cabaça na correnteza das águas, de toa? Os pés, o corpo estão no rio. A alma, no céu.

Segundo Porto

MITOS: O barranqueiro não mede o tempo pela medida da ciência. Mede o tempo da experiência. O imaginário mítico que se torna realidade concreta. O barranqueiro acredita no caboclo d’água. Existe e lhe dá peixe ou vira-lhe a canoa. Acredita no famaliá. Não é apenas um imaginário, mas um ser vivo que dá riqueza ao homem. Dá virilidade ao homem e lhe dá todas as mulheres. Há que pactuar. O preço é caríssimo.

TIPOS: O homem e sua diversidade. “Cada alma tem seu universo”. Universo físico que se restringe a um porto, a um rio. O universo psicológico. Múltiplo. Cada cabeça uma sentença, diz a sabedoria popular.

PELEJAS: A realidade social de uma cidade está contida neste poema. O poema fala de uma guerra sem citar uma arma, um palavrão, uma violência. Toda a realidade bélica está diluída nas palavras “pipoco” – “dor” – “sangrou”. Termos eufêmicos.

CAUSOS: O ontem, o hoje e o amanhã. É a vida. É o homem dando o passo para a vida. O pé esquerdo ficado no chão, apoiado no calcanhar. É o passado. O pé direito vai para frente bater forte no chão. É o hoje, o agora. Os olhos estão lá na frente, na curva da estrada. É o futuro.Versos curtos. Enxutos. Os causos não são contados, revelados. São sugeridos. A poesia não revela por inteiro, Sugere. Deixa para o leitor recriar.

CURADORES: O cerrado é a farmácia do pobre, do sertanejo. Os farmacêuticos nunca foram a uma escola de farmácia. Aprenderam ser serem ensinados. A experiência da vida. Tudo isso que disse acima, está contido em um único verso. “A ciência do ver e aprender a natureza ensinou”. Que poder de síntese! Só mesmo um poeta de sua sensibilidade.

Terceiro Porto

SANTO ANTÔNIO: O poema já começa com um verso de pura onomatopéia. Sem jogo de palavras. Sem artifício. O tom lírico como as festas do santo aí nessas beiradas de rio. As palavras em estado de graça como estado de graça é a vida de Santo Antônio. Não o santo de Pádua, nem de Lisboa. O Santo Antônio de Serra das Araras.

SÃO JOÃO: Na mesma linha estrutural do poema anterior. São João é santo do Sertanejo. Todos festejam o dia 23 de junho. Acedem fogueira. Soltam fogos. Fazem adivinhas. Dançam e cantam. A folia de São João corre a freguesia. O santo é protetor daquele que se viu às voltas com o tinhoso, com o demo, o fengo, o ele, o não sei que diga.

BOM JESUS: Neste poema as metáforas estão presentes, fortes. Dão força e vida ao rio. O rio se faz em caminho de fé. No verso “Abrindo caminho pelo sertão, o rio de fé”, Uma bem concebida hipérbole. O rio está cheio de fé. Cheio de objetos de fé que o barranqueiro manda pra Bom Jesus da Lapa.

SÃO GONÇALO: Muito bom.Nada acrescentar nem tirar. Perfeito. Lá de cima, São Gonçalo está todo feliz... O poema representa a realidade do santo e dos dançadores.

REIS: A sua alma de folião está toda neste poema. Você se transbordou. O sagrado e o profano se unem. Um corpo só. Aliás, para o popular o sagrado é profano e o profano é sagrado. Você no verso “O quatro e o lundu são preces de alegria do corpo” cristalizou muito bem o sagrado no profano.

Quarto Porto

CARNEIRO: O poema segue a linha. Contido. Ritmo dosado. A dança do carneiro se faz no poema com a mesma liberdade lúdica da coreografia. 

QUATRO: Aqui também o poema segue a coreografia do quatro. O primeiro “quarteto” é a dança, na qual os dançadores vão e voltam e tornam ir numa troca de posições. O primeiro verso “A linha invisível é o ponto de apoio” mostra na invisibilidade do apoio dos brincantes. Estes sabem muito bem desta linha. O espectador não familiarizado com a dança não vê a linha. Você, como observador e conhecedor da dança vê a linha. Tanto que a coloca logo no primeiro verso do poema. O quarto verso “Avançando e ciando como as maretas do rio” é uma fidelíssima comparação. Muito bem achado o pouco conhecido verbo (pouquíssimo usado) “ciciar” no gerúndio. O segundo quarteto é a história contada na letra do quatro. O terceiro quarteto é a volta seguida do agudo, agudíssimo da requinta.

LUNDU: Os passos, os improvisos do lundu estão mostrados nas imagens que você usa tomando dos animais, os bichos, como emblema. Vêem-se os corpos pulando no salão. O salto para a dança. O início. A sensualidade dos corpos. A leveza do cervo e as ondulações do bater das asas do jaburu nas lagoas e várzeas. 

REIS DO CACETE: Você brande as palavras com a mesma força com que os marinheiros jogam os cacetes no simulacro da luta. Até os poucos adjetivos usados (boa virtude) são fortes como “ruidosa”, “intrépidos”.

BOI DE REIS O seu conhecimento do reis-de-boi levou-o a construir um poema que é a cara do reis-de-boi. O ritmo que você deu ao poema mostra toda a plasticidade do folguedo, a alegria do folguedo. As palavras também são muito bem empregadas. Dão a sensação da música gostosa e mostram a alegria estampada na face dos brincantes. Temos por exemplo: “ri”, “largo”, “o rio solto”, “alegria”, “prazer”, “alegria”, “cores”, “vivas”, “boi/alegria”. O termo alegria é repetido três vezes. O poema é impregnado de uma musicalidade explícita. Nestes versos: “ O porto recebe as suas doces saudades” “com as cores vivas do boi/alegria” “E a cidade explode em sons e vozes”.

Quinto Porto

BARRO: O estrato óptico do poema é de uma evidência incontida. A peça do artesão pula à vista do leitor.Os dois últimos versos do primeiro quarteto são sublimes: “um pote é mais que um objeto é uma vida renascida” No segundo quarteto o homem volta às suas origens. Mete a mão na terra. Sente-se como se tocasse à profundeza da terra. Tira-lhe a matéria prima para a arte.

BURITI: O buriti é a palmeira sagrada dos gerais. Acompanha a vida do homem do berço ao túmulo. As veredas dos buritisais. O veredeiro. O poema nos pega pelos braços e nos coloca diante do pé de buriti.
O homem também se acha diante de muitos caminhos.

MADEIRA: O poema fala da carranca do São Francisco. O seu poder de proteção. A força de proteção da figura de proa se alia à estética e se completa na proa da embarcação. O poema segue a mesma linha objetiva de todos os outros. É o seu traço estilístico.

COURO: A civilização do couro. A penetração do interior do País pelas águas do São Francisco. A tropa de burros como elemento de integração. Tropa-de-burros, carro-de-boi-barca de frete. Eis a integração do grande rio. Os dois últimos versos são um verdadeiro achado: “o couro do boi foi mais do que serventia:
nessas travessias, foi a segunda pele do homem”. Esta segunda pele do homem está magistral.


FIBRAS E VARAS: A força do artesanato. Não é à-toa que o artesanato foi a primeira atividade cultural do homem. E Deus foi o primeiro artesão do mundo, quando fez Adão e Eva do barro. O poema está à altura do significado do artesanato feito de fibras e varas. Nos versos do terceiro quarteto você dá uma lição de significado e significante. Enquanto é buriti é apenas folha; a taboca é a cantiga ao vento, simples ruído; o croá é moita, espinho, enquanto na natureza são apenas significantes. Já quando tocados pelas mãos do artesão, ganham significados. Têm valor estético. Isto está dito no verso: “O todo na arte feita conforta o homem”

Sexto Porto

FARINHA – RAPADURA – CACHAÇA – MASSA – IGUARIAS:

Você entra no campo das artes e ofícios. Na indústria caseira. Os cinco poemas, como os outros, são objetivos. Construídos com palavras substantivas, concretas. Você se faz descritivo sem ser discursivo. O que não é fácil. Só mesmo um poeta para conseguir tal façanha.

Sétimo Porto

Em citação de Maria Luiz Ramos, Roman Ingarden diz que “a obra literária não constitui um feixe de elementos justapostos, mas uma construção orgânica, cuja conformidade se baseia exatamente na peculiaridade do estrato isolado” Este seu VIAJANDO é um exemplo do que foi dto acima. É uma construção orgânica cuja uniformidade se baseia na peculiaridade de cada tema exposto em cada poema. Esta construção se faz sólida com seu estilo simples de narrar. Esta uniformidade se cristaliza no Sétimo Porto.

CAMINHO DO RIO: A memória do barranqueiro se aviva, se refaz. Ganha corpo. Os vapores não são mera foto pregada na parede. O poema tira os velhos “gaiolas” do porto submerso e nos devolve inteiros com seu apito, com seus passageiros e a mercadoria nos porões. O vai e vem dos tripulantes. O comandante do alto do passadiço dá as ordens. Os marinheiros vão da proa à ré, de bombordo a estibordo. O vapor aponta na curva. Dá o apito. O porto apinhado de gente. O último verso sintetiza tudo: “E deles grandes família se fizeram de raiz”. E ficaram no porto, nos angicos. O porto submerso na memória se faz concreto.

ESTRADA DO TROPEIRO: O elo de comunicação. A integração homem/sertão/cidade. A carga no lombo dos burros. O tilintar da guiseira (guizo) da mula-madrinha. O território do Brasil foi conquistado nas patas dos burros e na força dos tropeiros.

ESTRADA BAIANEIRA: O rio é o melhor caminho, foi Deus que fez – diz o barranqueiro poeticamente. O barranqueiro é um poeta nato, intuitivo. O São Francisco foi o caminho da integração nacional. A expansão dos currais. Semeou as sementes das urbes em suas barrancas. Hoje são portos sem barcos.
Muito bem o último verso “semente lançada neste porto, ficou raiz” . A raiz é que segura a árvore. A raiz do porto se fez em cidade.

ESTRADA DO CARRO-DE-BOI: Os dois primeiros versos são música. Pura música. São a voz do carreiro-músico. “E a roda cravada rasgou trilha na terra” . Terra frouxa dos gerais. Também o carro-de-boi é elemento de integração. Abriu trilhas no mundo do sertão. O homem penetrou nos horizontes alcançando o inalcançável. As rodas do carro-de-boi precederam as do caminhão.

ESTRADA DE PNEUS: “Luzes, muitas luzes e roncos de motores” transformaram o sertão. A modernidade penetrou a terra, os gerais. Mas “O porto perdeu seu encanto e sua valia” diz o poeta com muita autoridade. Não é saudosismo, não é querer voltar ao ontem. É uma realidade concreta.

P.S.

O poeta cansado da travessia já sem voz e passos tardos fala neste poema indagativo. “E o homem, como ficou?”.
O poeta não dá resposta. Não procura o homem. Mostra-o, porém, invisível no imaginário popular.
O homem está nas LENDAS. “Por isso ele continua viajando no tempo”.
Grande final.
O poema LENDAS é o acabamento ornamental do livro.
O acabamento da construção.”

O meu companheiro de viagem, meu passageiro na travessia, arremata:

Não se trata de crítica literária. Apenas comentário de cada poema de barranqueiro para barranqueiro-poeta. As palavras vão saindo da cabeça diretamente para o papel. Não fiz revisão. Não reescrevi, não burilei. Se perde na estética, ganha na autenticidade, na espontaneidade. É água bruta que jorra do fundo da terra e corre nas veredas. Os poemas devem ser publicados. É como fruto do cerrado. Vem a flor, vem o fruto. Madurece e se faz alimento para todos. Esta de parabéns, mano. Você é poeta e acabou. O mano veio de guerra, 

..................................................DOMINGOS DINIZ





Comentário: Ricardo Leal de Melo

BH, 30/05/2005

VIAJANDO,
estive no último final de semana, sem sair do sofá...

De início, comovido pela ‘Ofertança’, deixei para trás a `Solidão’ que sinto, enquanto sertanejo n´alma e tão longe do sertão (não apenas fisicamente), para com olhos rasos d’água, secar aquele `Filete’ de saudades que me denunciavam a emoção.

A forte metáfora que representa “a despretensiosa gota”, mais uma vez me faz pensar no quanto frágeis somos nós nessa imensidão e no quanto podemos ser fortes, quando somos uma gota que soma a outras no rumo certo de formar a fonte, de onde viemos, viremos, ou simplesmente para onde vamos. Pena que nem todas as gotas dão caldo ao rio e se entregam por inteiro à Fonte, algumas que ficam nas sombras dos remansos, outras que se lançam n´alguma pedra e se deixam secar. 

Mas fui em frente, e naveguei o “Rio”, para no “Pescador” deparar o “Homem”. Não temo arriscar, autorizado pela sentença de que a poesia pertence ao leitor: ainda que pelo extinto animal de preservação da espécie, a dedicação do homem à sua prole é talvez o seu maior elo com a Criação (ou com a evolução), o que me conduz à conclusão de o pescador foi pescado, fincado nas barrancas do rio, para ali adotar “o porto de sua vida”: São Francisco.

Nos segundo, terceiro e quarto portos, deparei com temas recorrentes de minha infância, pois fui expectador, ator e, principalmente, personagem (ainda que figurante) da vida folclórica de São Francisco, em plena efervescência na década de 60 (e início da de 70), antes do infeliz advento da deusa TV. 

Mas foi no “Boi-de-Reis” que quedei tempo maior, para ler, reler, sentir... E quase me senti criança de novo, ao declamar, cantando: “Todo mundo me dizia...”. Foi então que percebi: ora, que tipo de poesia é esta que me coloca no palco dos acontecimentos? Li mais uma vez e reparei no estilo, quase jornalístico, nos detalhes narrativos do que de fato é o Boi-de-Reis. Quando já achava que tinha encontrado uma definição para a narrativa, tive que descartá-la, pois em regra o texto jornalístico é feito para informar e não para emocionar. Como estava informado e emocionado, concluo: o estilo mais uma vez é euclidiano, o que há de mais preciso no detalhamento das coisas do Sertão.

No quinto porto, as recorrentes lembranças das tralhas que sempre estiveram no caminhão de mudanças (que saudades da Cara de Barro Amarela!), que muitas vezes critiquei, tocam em mim o gosto despertado pela arte popular de minha terra, em especial as peças do Mestre Minervino que com orgulho coleciono (e até exponho, pois sei lá por quais estandes anda a minha Viola!).
No sexto porto, encontro identificação com todas as iguarias de minha terra, pois ‘Farinha’ com ‘Rapadura’ sempre comi (e sempre me lembrarão meu avô); por requeijão tenho paixão (derretido/a); sequioso sempre estive pelo buriti (desejo!), pelo umbu (maná do Sertão), pelo pequi (sabor do Norte); mas o incrível é que a cachaça só agora me desperta o gosto, como se tardiamente brotada as sementes que assisti os foliões jogarem ao Santo.

No último porto, os caminhos... Para mim, o homem que foi pescador, que fincou raízes, que ensinou e deu vida, aglutinando em torno de si tantas outras gotas ao descer o rio, por mais despretensioso que tenha sido enquanto gota, quando chegar ao mar terá deixado, em cada Porto, a marca indelével de sua existência.

Assim, depois de passar pelos SETE PORTOS, fui dormir. E voltei no tempo, sonhei comigo, meu mano Dudu, de cara suja de barro e voz rouca, dengosa, nos nossos folguedos de criança; com minha mãe, preocupada em nos velar em cada uma das várias casas do nosso Lar. Um detalhe: eu (menino) estava sorrindo...

Pai,
Parabéns pela obra!
Do seu filho,
Ricardo

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